sexta-feira, 28 de maio de 2021

Humano, não-humano, desumano e inumano

As discussões recentes sobre o anúncio do lançamento do guia oficial do Sabá para a 5a edição têm me feito pensar muito no conceito de humanidade e suas diferentes formas de negação que são apresentadas nos diversos materiais de Vampiro: a Máscara ao longo das diferentes edições. Filosofia não é minha área de especialidade, mas tive que estudar um bocado em uma disciplina do doutorado que fiz em 2017 e que tinha um tópico que tratava justamente de formas de pensamento não-humanas. Já se passaram 4 anos (e eu ainda não defendi kkkrying) e tô citando muita coisa de cabeça, mas acho que pode ser legal pra iniciar a discussão e enriquecer as mesas de todo mundo. 

Escrever sobre um ser "alienígena" é um desafio que é discutido na filosofia há séculos. Em seu artigo “Kant in the land of the extraterrestrials”, Peter Szendy resgata a ideia de Kant da limitação da antropologia devido à falta de outra espécie racional para que o homem pudesse se comparar, o “totalmente outro”. Kant então sugere que seria necessário o contraste entre os seres humanos com seres extraterrestres, que representariam uma racionalidade não-terrena. Esses "extraterrestres" não precisam ser entendidos de forma literal. Kant fala de criaturas de Mercúrio e Vênus, mas Vilém Flusser vai buscar seu "alienígena" nas regiões abissais do oceano, ao imaginar como seria o pensamento de uma espécie de molusco chamada vampyroteuthis infernalis, ou "Lula-Vampiro-do-inferno".


No trabalho final da disciplina, defendi que William Golding em "Os Herdeiros" estava descrevendo o pensamento do "outro" ao falar de neandertais. Esse campo de estudos é chamado de "filosoficção", já que usa histórias inventadas para fazer reflexões sobre a natureza humana. Tanto para Flusser quanto para Golding, a forma de racionalidade não-humana está intimamente ligada à sensorialidade desses seres (tem uma passagem fantástica do Flusser sobre como o pensamento humano é vertical, já que nossa movimentação é restrita a isso na maior parte do tempo, enquanto a Lula se movimenta de forma tridimensional. Os neandertais de Golding têm uma espécie de telepatia e descrevem o mundo a partir dos odores, ao invés da visão). Em outras obras, como no filme "A chegada", essa construção do pensamento extraterrestre explora formas alternativas de linguagem. O que mostra a natureza incompreensível do outro é a maneira dele se expressar. 

Dito isso tudo, vamos pensar na Humanidade em Vampiro - a Máscara. Não tenho aqui a primeira edição, mas na segunda edição é descrita de forma super vaga, basicamente como "até onde o seu personagem degenerou para a bestialidade". Embora seja esmiuçada em outras edições, a ideia geral sempre é a mesma: Humanidade é aquilo que evita que o personagem se entregue para a Besta, como deixa claro o V20: "Os mortais normalmente também seguem a Trilha da Humanidade, apesar de o fazerem de forma inconsciente: eles não sabem que podem ser algo mais. Por isso, esse sistema mecânico de moralidade raramente é aplicado a eles. Certamente, alguns mortais — sequestradores, assassinos e outros — têm baixos níveis de Humanidade, mas ao contrário dos Membros, eles não têm nenhuma Besta corroendo seu interior." Assim, podemos entender que A Besta faz o papel de "totalmente outro" em Vampiro, a Máscara. Se para Kant estava em outro planeta, para Flusser no fundo do oceano e para Golding estava no passado, para os autores do World of Darkness essa alteridade está dentro do próprio personagem. Portanto, para entendermos a Humanidade, precisamos entender A Besta.

No V20, a Besta é descrita da seguinte forma:

"Claro, há um lado negativo também. Dentro de cada vampiro se esconde uma criatura, apaixonada faminta que é o oposto do homem. É a besta, e a besta conhece apenas três atividades: Matar, alimentar-se e dormir. É o desejo, agitando todos os Membros e incitando-os a matar a vítima em vez de tomar apenas sangue suficiente." Assim, podemos afirmar que a Besta é a negação da racionalidade, a extrapolação dos instintos básicos. No entanto, a ideia do homem como ser racional em plena consciência é uma construção ocidental humanista, que floresce entre os séculos XVI e XIX. Freud, quando fala das três feridas narcísicas do ser humano coloca a existência de um inconsciente do qual não temos controle. Provoco então: Não seria a Besta não uma negação da natureza humana, mas uma entrega a uma natureza profundamente humana? O próprio jogo não nega essa possibilidade, quando coloca "É possível que vampiros com altos níveis de Humanidade sejam mais humanos do que muitos mortais!". O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro quando fala do perspectivismo ameríndio e da cultura de alguns povos nativos de nosso continente coloca como ponto importante a não diferenciação entre seres humanos e outras espécies. Quando Guimarães Rosa fala de uma onça como sua parente, ele está entendendo como igual um animal que deseja somente "matar, se alimentar e dormir" (faltou aqui talvez o "reproduzir-se").

Porém, se uma batalha contra a Besta interior pode as vezes parecer algo abstrato demais, o Sabá é apresentado - sobretudo a partir da terceira edição - como o "totalmente outro" externo, já que seria uma seita que "rejeita a Humanidade". No entanto, ao rejeitar a humanidade, a Espada de Caim não sucumbe à Besta, e sim estabelece outros códigos de conduta para controlá-la. E esses códigos de conduta são todos baseados em comportamentos humanos, ou a interpretação humana do comportamento. Mesmo em termos de mecânicas de jogo, o Sabá encontrou outra maneira - bastante criativa - de lidar com A Besta.  O Sabá não é "inumano". Nunca foi. Ele só é humano de uma forma diferente, assim como várias culturas o são ao redor do globo. Entender o Sabá como "alienígena" é comprar a narrativa da Camarilla. Mais do que isso, é embarcar num discurso eurocêntrico iluminista que se pretende universal (e falha vergonhosamente).


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(Postei esse texto no facebook, o que levou a uma resposta de Rô Amadeu, do canal Segredos de Narrador. Para ele, a humanidade seria a moralidade padrão do cenário por uma imposição das pressões sociais. - Não tenho autorização para republicar o texto dele, mas ele pode ser lido aqui. Respondi mais ou menos dessa maneira:

Olá, Ro. Não li seu texto como contraponto ao meu, mas sim como um ponto q não explorei. Entendo seu texto pelo fundamento do jogo, mas acho muito ruim que esse seja o argumento.

Primeiro pq ele parte da premissa filosoficamente fraca de que todo homem tem humanidade, num sentido muito restrito. O V20 traça exceções - "os sequestradores, assassinos e outros" - mas a real é que dentro dos princípios que ele explicita através das mecânicas de jogo, boa parte da humanidade - talvez a maioria - não é humana. (nem vou entrar de novo no ridículo que é a hierarquia de pecados da Humanidade - onde "dano intencional à propriedade" é mais grave do que matar alguém acidentalmente).

E isso está contemplado no primeiro parágrafo do seu texto: ao entender que a humanidade não é uma essência do ser humano, mas fruto da sociedade, pensar na "Humanidade" como padrão é ignorar a diversidade das sociedades humanas. Na prática, cada sociedade impõe a seus indivíduos "trilhas de sabedoria" diferentes.

Além disso, pq ele reforça a ideia de q só existe uma forma de ser "humano", cristã. (aliás, poderíamos discutir mesmo se só existe uma forma de ser cristão, essa forma europeia). Dessa forma, o jogo mais uma vez toma o cristão europeu como "homem universal" (e isso é sinalizado ao longo de todo o cenário. A confirmação da lenda de Caim como "a correta" é extremamente problemática, se pararmos pra pensar).

A real é que - como eu já disse diversas vezes - os autores de Vampiro, a Máscara NÃO se preocuparam com isso. A visão de mundo das trevas de Mark Rein Hagen é simplória. Vampiro não foi escrito pra ser jogado fora dos EUA e da Europa ocidental. Eles podem ser bem intencionados, mas nunca trouxeram a discussão pra esse nível, até pq estão nos lugares confortáveis do capitalismo central e da filosofia antropocêntrica de base clássica européia. Mas isso não é desculpa/motivo para que nós, jogadores da periferia global, aceitemos isso.) 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Das metamorfoses do coração e da mente

“Quem não foi de esquerda antes dos 18 anos não tem coração. Quem continua de esquerda depois dos 18, é porque não tem cérebro”. Por anos, eu e muitos de minha geração ouvimos esse ditado, em tom meio de brincadeira, meio sério, dito por gente mais velha com aquela expressão de quem já passou por tudo e que aprendeu com a experiência. E parecia que eles tinham razão. Afinal, as tentativas de governo da esquerda deram errado por todo o planeta (pelo menos era o que eles nos diziam). O chiste ensinava (e eles são extremamente eficiente nessa função, ridendo castigat mores) que a esquerda, apesar de bem intencionada, não passava pelo teste da racionalidade e da experiência. No entanto, apesar de todas as provas racionais, apesar de ter “vencido o grande debate das idéias do século XX”, o capitalismo não conseguia ganhar os jovens. E legiões de garotos continuavam a deixar a barba crescer, meninas vestiam vermelho e juntos clamavam por igualdade, mesmo “sabendo” que era impossível.
Mas é claro que o capitalismo não havia enterrado o feudalismo e o comunismo sendo bobo. A capacidade de adaptação desse sistema – comparável a das ratazanas de esgoto – fizeram com que o “velho” se vestisse de “novo” e um discurso sob medida para os filhos do século XXI surgisse. “Empreendedorismo”, sussurraram os donos da bola, “o melhor jeito de não ser explorado é ser você mesmo o patrão”. Isso fez brilhar os olhos daqueles meninos que tinham um computador, uma biografia do Steve Jobs ou do Bill Gates[1] e um pai dominador (como todo adolescente sempre acha que tem). “Meritocracia”, berraram os que controlam o capital, “trabalhe duro e você chegará lá, sem depender e dever nada a ninguém”. Esse foi o canto da sereia para aqueles jovens individualistas que foram criados para acreditarem que eram gênios a espera de serem descobertos. O capitalismo tinha vencido. Agora ele tinha o coração dos jovens. Só não acredita no capitalismo quem não tem coração, quem não tem um sonho.
Mas o tempo passou e o mundo continuou girando. E vieram os dados. Num sistema que se baseia na competição, nem todos podem vencer. Aliás, nessa corrida, só há um lugar no topo do pódio. Para todos os outros, resta o gosto amargo da derrota. A meritocracia e o empreendedorismo não se mostraram assim tão justos: a competição é desleal e faz com que os empreendedores de sucesso venham em sua maioria dos estratos econômicos mais elevados (sim, existem as exceções, elas estão aí justamente pra manter vivo aquele sonho). Com a vivência, vamos acumulando casos de pessoas que eram talentosas e esforçadas, mas que não “venceram na vida” em detrimento de algum herdeiro de alguma família de ricos há cinco gerações. A experiência nos faz perder a fé na “justiça” do livre mercado. Nas últimas décadas, a desigualdade só aumentou, com os ricos ficando cada vez mais ricos e os pobres ficando cada vez mais pobres, como mostrou – com riqueza de exemplos –  Thomas Piketty. Numa sociedade onde cada vez mais são muito pobres para que cada vez menos sejam muito ricos, não dá pra falar que o capitalismo está dando certo. Qualquer um que tenha um cérebro (e honestidade ao usá-lo) pode constatar isso. É cada vez mais impossível ser racional e ser capitalista.

A esquerda busca soluções para esses problemas que o capital sequer admite que existem. A esquerda ainda acredita num mundo com mais igualdade e solidariedade, enquanto o livre mercado quer nos convencer que a miséria é algo natural, inerente ao homem, inevitável e que o único caminho é o egoísmo.
Eu entendo um jovem que acredita na sedução do capitalismo. A promessa de uma vida melhor que só depende dos seus esforços é realmente encantadora. Eu mesmo já acreditei nela. Mas depois de conhecer um pouco mais da vida, a gente percebe que isso é uma ilusão: a gente sempre vai depender uns dos outros. E esse planeta só vai ser habitável se aprendermos a dividir melhor, a compartilhar. Talvez só não seja capitalista com vinte anos quem não tem coração, mas pra continuar capitalista depois de uma certa idade, só não tendo cérebro. E nem coração.



[1] Repararam que ninguém mais fala do Linus Torvalds?

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Mas...

Muitos me acusaram de ser um censor, de ser contra a liberdade de expressão, quando na verdade não foi bem isso que eu defendi. A verdade é que a liberdade de expressão é um direito maravilhoso, mas não é infinito. A maioria dos países democráticos estabelece limites para coibir discursos que possam ser potencialmente danosos. 
Durante a recente discussão sobre as restrições propostas à publicidade infantil, “descobrimos” que medidas semelhantes existem – por exemplo – na Inglaterra. Sim, o país de David Cameron, um dos primeiros a defender a liberdade de expressão no caso de Paris, proíbe publicitários de criar anúncios que tenham crianças como público-alvo. Eles estão errados? Em minha opinião, não. Na própria França, a revista “Minute” foi multada em 10 mil euros por uma capa racista, em que comparava a ministra Christiane Taubira à um macaco. Os editores tentaram argumentar que se tratava de uma sátira, mas tal justificativa não inocentou o semanário. Uma forma eficiente de se traçar uma linha clara entre o aceitável e inaceitável. 



O comediante francês Dieudonné M´bala M´bala foi condenado a pagar multas por piadas consideradas antissemitas em pelo menos cinco ocasiões desde 2006. No final de 2013, uma parte da comunidade judaica francesa foi às ruas pedir ao poder público que proibisse as apresentações do comediante, e foi atendida! Em 2014, seus espetáculos foram banidos de diversas cidades. Em fevereiro, teve sua entrada na Inglaterra proibida. O ministro do interior Manuel Valls declarou ao Le Monde: “"Dieudonné é profundamente antijudeu. Nos seus espetáculos, não é apenas uma representação, é um comício” (afinal, como disse o grande Laerte Coutinho: "(...) toda piada é ideológica, não existe piada só piada."). Isso é censura? Sim! Está errado? Não, claro que não! O que lamento é que não foi garantido o mesmo direito à comunidade muçulmana da França. 
Aliás, o discurso de ódio de uma minoria de clérigos muçulmanos que vive de pregar a destruição da sociedade ocidental e a submissão dos “infiéis” às leis islâmicas também deve ser encarada como um abuso dentro da Liberdade de Expressão. É um discurso raivoso, feito sob encomenda para seduzir jovens marginalizados que encontram na religião uma possibilidade de se tornarem protagonistas de suas próprias vidas. Esses discursos deveriam ser combatidos, com a mesma firmeza que devem ser combatidas as ofensas aos milhões de muçulmanos pacíficos em todo o mundo. 
Toda essa discussão sobre os limites da liberdade de expressão, ou sobre a falta deles, me parece ser fruto de uma sociedade patologicamente individualista. “Eu tenho direito de falar o que eu quiser, doa a quem doer” é como reivindicar o direito de ofender qualquer pessoa, mesmo que inocente. É uma declaração de que meu direito de ofender é maior do que o seu direito de não ser ofendido. É o “eu” sobre o “seu”. 
O termo que vem sendo utilizado para designar a ação de se importar com isso é “autocensura”. Criticam aqueles que deixam de escrever/publicar alguma coisa por se importarem com o que pensarão aqueles que lerem. Esquecem que somente as crianças e os irresponsáveis falam tudo que pensam, assim, na lata. Isso não é sinceridade, mas sim a franqueza grosseira. E tão grave quanto uma censura externa que quer proibir alguém de dizer algo é o patrulhamento daqueles que querem forçar a dizer algo (ou concordar com o que alguém diz). 
Pensem comigo: se a revista trouxesse Mickey Mouse na mesma situação em que colocou o profeta Maomé, provavelmente seria processada pela Disney, e a justiça daria ganho de causa à empresa norte-americana, por direitos de propriedade – sem que ninguém achasse isso estranho ou absurdo. Parafraseando Jorge Furtado, “o que coloca Mickey Mouse acima de Maomé na escala de respeito é o fato de ter um dono”. 
Não aceitam sequer a reflexão. Demonizaram a conjunção adversativa “mas” como se qualquer crítica à postura do semanário francês se tornasse automaticamente uma defesa dos terroristas ou culpar as vítimas. Talvez tenhamos criado aqui um novo dogma, um novo livro sagrado que não pode ser questionado. A diferença é que ele traz desenhos e é publicado toda semana. E é de uma empresa.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Confusão

Meu texto anterior - "Je ne suis pas Charlie" - foi compartilhado por muitas pessoas no facebook, tendo sido modificado por alguns. Cortaram parte do último parágrafo, acrescentaram algumas linhas sobre o STF, o PT e o PSDB... O pior é que o grande Leonardo Boff acabou recebendo uma dessas versões modificadas, e publicou em seu blog dando créditos à outra pessoa. Já entrei em contato com ele e a situação já foi corrigida, mas gostaria de deixar claro que fui eu mesmo quem escreveu o texto, não copiei nenhuma linha dele de nenhum outro autor. Meu texto foi publicado na quinta-feira, o compartilhamento que Leonardo Boff (ou alguém da equipe dele) pensou ser o original é de sexta-feira. 
Não me oponho à livre circulação desse texto, já autorizando inclusive sua tradução para qualquer idioma (algumas pessoas me pediram). Só peço para que ele não seja modificado ou editado e para que seja creditada a autoria. Se puderem me avisar se forem republicá-lo, me dando o link da página, seria ótimo. Obrigado a todos e me perdoem por toda essa confusão. 

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie

Em primeiro lugar, eu condeno os atentados do dia do 7 de janeiro. Apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões, sou um cara pacífico. A última vez que me envolvi em uma briga foi aos 13 anos (e apanhei feito um bicho). Não acho que a violência seja a melhor solução para nada. Um dos meus lemas é a frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte da humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobramos sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro. Ninguém merece. A morte é a sentença final, não permite que o sujeito evolua, mude. Em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem.

Após o atentado, milhares de pessoas se levantaram no mundo todo para protestar contra os atentados. Eu também fiquei assustado, e comovido, com isso tudo. Na internet, surgiu o refrão para essas manifestações: Je Suis Charlie. E aí a coisa começou a me incomodar.

A Charlie Hebdo é uma revista importante na França, fundada em 1970 e identificada com a esquerda pós-68. Não vou falar de toda a trajetória do semanário. Basta dizer que é mais ou menos o que foi o nosso Pasquim. Isso lá na França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi conhecer a Charlie Hebdo em 2006, e já de uma forma bastante negativa: a revista republicou as charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja, a direita européia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome da “Liberdade de Expressão”, mas tem mais...

O editor da revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de “não-civilizados” (o que gerou críticas da colega de revista Mona Chollet – críticas que foram resolvidas com a saída dela). Ele ficou no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido só como Charb. Foi sob o comando dele que a revista intensificou suas charges relacionadas ao Islã – ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011.

Uma pausa para o contexto. A França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição de “cidadão de segunda classe”. Após os atentados do World Trade Center, a situação piorou. Já ouvi de pessoas que saíram de um restaurante “com medo de atentado” só porque um árabe entrou. Lembro de ter lido uma pesquisa feita há alguns anos (desculpem, não consegui achar a fonte) em que 20 currículos iguais eram distribuídos por empresas francesas. Eles eram praticamente iguais. A única diferença era o nome dos candidatos. Dez eram de homens com sobrenomes franceses, ou outros dez eram de homens com sobrenomes árabes. O currículo do francês teve mais que o dobro de contatos positivos do que os do candidato árabe. Isso foi há alguns anos. Antes da Frente Nacional, partido de ultra-direita de Marine Le Pen, conquistar 24 cadeiras no parlamento europeu...

De volta à Charlie Hebdo: Ontém vi Ziraldo chamando os cartunistas mortos de “heróis”. O Diário do Centro do Mundo (DCM) os chamou de“gigantes do humor politicamente incorreto”. No Twitter, muitos chamaram de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do momento, da emoção. As charges polêmicas do Charlie Hebdo são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos.

O primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. (Isso gera situações interessantes, como o filme A Mensagem – Ar Risalah, de 1976 – que conta a história do profeta sem desrespeitar esse dogma – as soluções encontradas são geniais!). Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a estátua de Nossa Senhora para atacar os católicos. O Charlie Hebdo publicou a seguinte charge:


Qual é o objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. Ok, o catolicismo foi banalizado. Mas isso aconteceu de dentro pra fora. Não nos foi imposto externamente. Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais franceses – famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerâmcia (ver Caso Dreyfus) – deram ganho de causa para a revista. Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã.

Mas existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas ou fazendo alusões à violência (quantos trocadilhos com “matar” e “explodir”...). Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do momento que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam...



E aí colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10% de muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos rindo-se deles). A piada tem esse poder. Se a piada é preconceituosa, ela transmite o preconceito. Se ela sempre retrata o árabe como terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo árabe é terrorista. Se esse árabe terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da mesma forma que seu vizinho muçulmano, a relação de identificação-projeção é criada mesmo que inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas. Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas.

No artigo do Diário do Centro do Mundo, Paulo Nogueira diz: “Existem dois tipos de humor politicamente incorreto. Um é destemido, porque enfrenta perigos reais. O outro é covarde, porque pisa nos fracos. Os cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo pertenciam ao primeiro grupo. Humoristas como Danilo Gentili e derivados estão no segundo.” Errado. Bater na população islâmica da França é covarde. É bater no mais fraco.

Uma das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles também criticavam católicos e judeus. Isso me lembra o já citado gênio do humor (sqn) Danilo Gentilli, que dizia ser alvo de racismo ao ser chamado de Palmito (por ser alto e branco). Isso é canalha. Em nossa sociedade, ser alto e branco não é visto como ofensa, pelo contrário. E – mesmo que isso fosse racismo – isso não daria direito a ele de ser racista com os outros. O fato do Charlie Hebdo desrespeitar outras religiões não é atenuante, é agravante. Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.

“Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça francesa tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.

“Mas isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos significados da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe. Quando se decide que você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso devem ser evitados – como o racismo ou a homofobia – isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem que você não pode usar determinado personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem toda censura é ruim.

Por coincidência, um dos assuntos mais comentados do dia 6 de janeiro – véspera dos atentados – foi a declaração do comediante Renato Aragão à revista Playboy. Ao falar das piadas preconceituosas dos anos 70 e 80, Didi disse: “Mas, naquela época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam.”. Errado. Muitos se ofendiam. Eles só não tinham meios de manifestar o descontentamento. Naquela época, tão cheia de censuras absurdas, essa seria uma censura positiva. Se alguém tivesse dado esse toque nOs Trapalhões lá atrás, talvez não teríamos a minha geração achando normal fazer piada com negros e gays. Perderíamos algumas risadas? Talvez (duvido, os caras não precisavam disso para serem engraçados). Mas se esse fosse o preço para se ter uma sociedade menos racista e homofóbica, eu escolheria sem dó. Renato Aragão parece ter entendido isso. 

Deixo claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não estou dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria ser julgado. Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale”. É “Fale, mas aguente as consequências”. E é melhor que as consequências venham na forma de processos judiciais do que de balas de fuzis.

Voltando à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do que outros, e já começamos a ver no que o atentado vai dar. Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi declarada” (grifo meu). Essa fala mostra exatamente as raízes da islamofobia. Para os setores nacionalistas franceses (de direita, centro ou esquerda), é inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em seguir “o modo de vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até... charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos chargistas do mundo todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as vítimas. De longe, a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que locais de culto islâmico na França foram atacados – um deles com granadas! - nessa madrugada, a coisa perde um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen, que pedia para a França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos” – e ela sabe disso).

Por isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro de ontem, eu não sou Charlie. No twitter, um movimento – muito menor do que o #JeSuisCharlie – começa a surgir. Ele fala do policial, muçulmano, que morreu defendendo a “liberdade de expressão” para os cartunistas do Charlie Hebdo ofenderem-no. Ele representa a enorme maioria da comunidade islâmica, que mesmo sofrendo ataques dos cartunistas franceses, mesmo sofrendo o ódio diário dos xenófobos e islamófobos, repudiaram o ataque. Je ne suis pas Charlie. Je suis Ahmed.